Como você se sustenta?

As dores — porém delícias — de uma vida incerta

Alessandra Nahra
Revista Subjetiva

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toda professorinha dando oficina

Tem gente que me pergunta isso, e eu imagino que tem gente que não pergunta, mas tem curiosidade. Então vou fazer uma retrospectiva de como cheguei aqui pra explicar o que me mantém aqui, agora. Eu me formei em jornalismo, mas fazia anos que eu não trabalhava como jornalista. Eu era sócia de uma consultoria de UX e a gente trabalhava para mega empresas tipo NET, Vivo, Gol, Itaú, e eu ganhava um monte de dinheiro. Mas chegou um dia em que o trabalho que eu fazia não fazia mais sentido para mim. Eu não gostava mais das atividades, do dia-a-dia, dos conteúdos, das conversas, e comecei a questionar o que estava fazendo das horas da minha vida.

Eu estava ajudando a construir o projeto de mundo do Itaú, por exemplo. Que não combinava com o meu. Mas eu não sabia o que ia fazer se não fizesse aquilo; eu achava que não sabia fazer mais nada e que ia ficar pobre se saísse da empresa. Eu estava viciada no dinheiro que eu ganhava.

Então um dia eu achei um cachorro na rua e resolvi adotá-lo. Só que no prédio em que eu morava não podia ter cachorro, então eu mudei para um sobrado. Comecei uma horta na laje e fui estudar permacultura, agricultura urbana, agrofloresta, agroecologia. Comecei a dar oficinas sobre como fazer hortas em espaços pequenos, sem ter solo no chão. Comecei a viajar, fazer cursos, vivências, participar de mutirões, a conhecer gente que vivia de maneiras diferentes do jeito padrão, e comecei a perceber que "olha, é possível viver e trabalhar de outros jeitos, mais livre, com menos dinheiro, menos coisas e menos apegos".

Heitor, um cachorro preto
Heitor

(esse texto tem muitas vezes a palavra “comecei”; perdão pela repetição, mas é que essa fase da minha vida tá cheia de começos, mesmo)

Eu estava saindo de uma depressão e comecei a me lembrar do que eu gostava, do que me dava prazer, entusiasmo, força, alegria: plantar, cozinhar, cuidar de bichos, escrever. Era isso que eu queria fazer. E não o que eu estava fazendo diariamente, várias horas por dia; coisas que eu achava chatas, conversas que pareciam de gente louca e não faziam o menor sentido na vida real, só faziam sentido no âmbito do capital, do mercado, do "sucesso", do lucro. A gente escolhe uma profissão pensando no sustento, no salário, no dinheiro; muitas vezes a gente nem considera se vai gostar de estar ali naquele lugar, com aquelas pessoas, falando sobre aquelas coisas e fazendo aquelas atividades (não estou julgando que escolhe fazer e continuar fazendo essas coisas. Tem gente que dá jeito de ressignificar seu trabalho sem ter que mudar. Ou que tem objetivos que justificam e compensam a falta de sentido. Ou que consegue hackear algumas partes do sistema por dentro. Ou que simplesmente precisa mesmo. Cada um sabe de si e de suas condições e escolhas).

Fiz o site Herbívora e comecei a escrever sobre hortas, comidas e bichos. Então eu saí da empresa e fui viajar mais, aprender mais, estudar mais e plantar mais. E mudei radicalmente meu trabalho.

eu e Guri na laje de casa

Hoje tenho uma vida bem boa. Eu fico muito em casa, as tarefas do cotidiano ocupam uma parte importante do meu dia, e eu gosto. Fazer comida, tomar sol, cuidar da horta, dos bichos, de mim; fazer almoço pra algum amigo, conversar com os vizinhos, varrer o quintal, podar as árvores, mexer na compostagem, escovar os gatos, passear com o cachorro, ler, estudar, dormir no sofá depois do almoço.

Voltei a ser jornalista e me especializei em escrever sobre agricultura sustentável, agroecologia, meio ambiente, sistemas alimentares, alimentação política. Colaboro com vários veículos online. Alguns me pagam.

Algumas matérias recentes:

(tem mais em alenahra.com.br)

Também dou oficinas de horta, compostagem, alimentação política. E faço trabalhos de escrita. Ano passado uma editora me contratou para escrever um livro sobre um mestre de capoeira angola que é permacultor, e outro sobre um fotógrafo de surf. Faço conteúdo para o site, o Instagram, o HerbivoraTube. E também ajudo as pessoas a fazerem hortas em suas casas ou negócios.

horta na mureta de um salão de beleza

Eu junto trabalho com ativismo. Mas eu posso ser contratada só para escrever, sem ativismo (dependendo do assunto, claro). Também posso ser contratada para fazer freelas de pesquisa qualitativa — como entrevistas, moderação de testes de usabilidade, dinâmicas participativas (dependendo do cliente, claro).

Eu GOSTO do meu trabalho e do meu dia a dia. Das atividades, conteúdos, conversas, pessoas. Valorizo muito meu cotidiano, meu trabalho, minha tarefa, meu jeito de viver. Agradeço, agradeço, agradeço. ❤

Tem épocas em que eu tenho mais trabalho, tenho que escrever bastante, produzir conteúdos, montar oficinas, divulgar, entrevistar gente, pesquisar, fazer aulas, dar aulas.

Tem também épocas em que não tem muito trabalho remunerado eu fico nervosa, ansiosa e até meio apavoradinha. Mas dali a pouco aparece um freela, uma oficina, uma ajuda, um pagamento adiantado. Já pedi dinheiro emprestado pras amigas, já pedi dinheiro pra família, já usei reservas que tinha desde o tempo em que eu ganhava bem. No verão eu alugo a casa que tenho em Santa Catarina (a coisa mais responsável que fiz na vida, construir uma casa).

Mas tem épocas em que eu me jogo no fluxo e não fico nem um pouquinho nervosa, nem ansiosa e muito menos apavoradinha. Eu não tenho dependentes humanos pra sustentar, meus maiores gastos são com aluguel e cuidados com os seis bichos que me acompanham. Cozinho em casa e não fico mais comprando coisas desnecessárias. Gosto de viajar mas não sofro quando não posso viajar tanto quanto antes eu viajava. Eu tenho suporte, gente que me ajuda quando eu preciso, e tenho noção de todos os meus privilégios. Me sinto muito acolhida pela Terra, essa planeta incrivelmente fértil e abundante. Eu posso modular minha vida pra caber no quanto eu quero trabalhar. Sinceramente, não quero trabalhar muito. E assumo as consequências disso. Tem muita coisa legal e boa pra fazer na Terra, tem muita coisa que eu quero aprender, muita música pra dançar, muito livro pra ler, muita gente pra conversar e abraçar, muita planta e bicho pra conhecer, muita coisa pra escrever, muita beleza pra ver, muito serviço pra fazer. Eu quero ter tempo pra tudo isso. Mais do que quero ter montes de dinheiro.

Eu tenho uma tarefa no mundo, esse é o trabalho que considero mais importante. Nem sempre é o que remunera. E nunca é o que me obriga a muitas horas de atividades sem sentido. Dentro dessa tarefa está mostrar que é possível uma vida diferente (do modelo capitalista tradicional de competição e acumulação). E lutar para que todos tenham acesso à vida que quiserem, com necessidades básicas atendidas.

“Todos têm de possuir igual acesso aos meios sociais e materiais necessários para ter uma vida plena”, diz Erik Olin Wright no livro Como ser anti-capitalista no século XXI.

O que é uma vida plena varia de acordo com a subjetividade de cada um; vida plena de acordo com Wright, “é aquela na qual as capacidades e os talentos individuais se desenvolveram de tal forma que lhes é permitido buscar seus desejos, de modo que, num sentido mais amplo, conseguiram realizar tanto seu potencial quanto seus propósitos”.

Não adianta se só for eu. Temos que ir todos juntos.

2019

Em 2018 eu fiz coisa pra caramba. Já 2019 foi um ano difícil pra qualquer ser vivente no Brasil, e além disso eu tive uma crise depressiva. Em março eu tava um caco, não sabia se ia conseguir chegar nem no fim do mês sem desmoronar; tava considerando desistir de tudo e ir me encostar num puxadinho na casa da minha irmã com os cinco gatos e o cachorro. Tava sem trabalho, sem grana, sem amor nem próprio, sem entusiasmo para a tarefa; achando que não sabia fazer nada, que era uma baita incompetente, me sentindo uma merda e achando que tinha cagado nas escolhas (caguei numas mesmo, mas aprendi com elas). Comecei o tratamento da depressão e lentamente fui saindo do buraco. Eu sempre digo que a vida não é linear, não tem passado-presente-futuro ordenados de maneira lógica e progressiva; a gente dá uns passos pra frente e outros pra trás, volta cinco casas, avança três; às vezes fica dando giros emperrada num mesmo lugar, dali a pouco sai e parece que tá tudo fluindo, mas dali a pouco cai num sulco de novo e assim é a vida: impermanente. Não reclamar quando estiver "ruim" e não se apegar quando estiver "bom". Não tem um final feliz e nunca serão felizes para sempre. Não tem sempre. E nem final. Um dia esfria, noutro dia esquenta. Um dia tô com depressão outro dia ainda tô com depressão mas lidando com isso com ferramentas melhores e com mais aceitação das coisas como elas são, o que traz mais tranquilidade inclusive para passar pelos momentos piores. Não tem luz no fim do túnel. Ou tem, mas também pode ser que tenha outro túnel mais pra frente.

Ah, a vida. Credo, que delícia. ❤

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Grata!

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Alessandra Nahra
Revista Subjetiva

Escrevo, planto, estudo, viajo. Falo com bichos, abraço árvores, e vice-versa.