Modelo híbrido — ou multipotencial

Alessandra Nahra
3 min readSep 23, 2021

Quando eu saí da Saiba+, em 2016, eu escrevi um texto dizendo que decidir fazer outra coisa não é o mesmo que "largar tudo". Eu estava saindo da sociedade com Ana Coli e Carol Leslie para viajar, estudar e trabalhar com agroecologia. Ainda que fosse uma ruptura um tanto radical, pois UX e agroecologia são áreas bastante diferentes, eu não sentia que estava "largando tudo". No texto, eu dizia que tudo que eu havia feito até o momento era parte de mim. Não era possível, portanto, "largar tudo": não se larga quem a gente é.

A vida não é linear. Os caminhos quase nunca são retos. Rapidamente entendi que eu nunca iria conseguir fazer apenas uma coisa na vida. Recentemente eu estava num projeto em que tinha que entrevistar professores. Eles me contavam que as escolas estavam em um modelo híbrido de aulas: parte online, parte presencial. Eu adorei o conceito de modelo híbrido e achei que cabe muito bem para mim. Eu vivo num modelo híbrido: trabalho com UX e com agroecologia. Às 7h tô de galocha e unhas cheias de terra semeando o milho; às 10h tô maquiada no Zoom entrevistando uma pessoa que mora no Ceará. Parece esquisito? Pode parecer. Afinal, como eu já disse, são coisas completamente diferentes. Mas lidar com a esquisitice dos nossos afetos é parte do amor próprio.

Modelo híbrido pode ser outro nome para pessoas multipotencial — um termo bonito que eu aprendi recentemente e que ajuda a dourar a pílula da minha esquisitice. Diz a Wikipedia que multipotencialidade "faz referência à habilidade e preferência de uma pessoa, particularmente com forte curiosidade intelectual e/ou artística, em alcançar sucesso em duas ou mais áreas". Que o termo também pode se referir "a um indivíduo cujos interesses ocupam vários campos ou áreas, em vez de serem focados em apenas um". Então tá. Há que se aceitar nosso lugar no mundo. A pessoa é para o que ela nasce.

Meu currículo (e perfil no Linkedin) reflete essa multipotencialidade. E eu tenho noção de que pode não parecer assim tão bonito. Afinal, a pessoa faz o quê? Quer plantar ou moderar teste de usabilidade? Parece que falta foco, né?Essa confusão acontece dos dois lados. Eu faço mestrado na Faculdade de Saúde Pública, pesquisando agroecologia e sistemas alimentares. Lá eu sou uma estranha no ninho. Jornalista, escritora e pesquisadora no meio de um monte de nutricionistas. Meu Lattes também reflete essa multipotencialidade. Isso não é comum. Na academia as pessoas geralmente se dedicam a vida toda a aprofundar-se em uma só área.

Mas sabe o quê? Minha experiência em pesquisa qualitativa, adquirida em muitos anos de UX research, é muito bem vinda na área da saúde. Assim como meu talento com a escrita e minha capacidade de fazer apresentações bonitas (um skill não-nato que foi lapidado em anos de vida corporativa). Por outro lado, minha experiência com a agroecologia fez de mim uma pesquisadora melhor. Eu tenho real interesse e curiosidade sobre a pessoa que está ali na minha frente sendo entrevistada. Eu quero entrar no mundo dela, assim como aprendi a entrar nos biossistemas agroecológicos.

Até agora não havia falado muito sobre isso porque é confuso: não sei, de fato, como me posicionar. Tinha (tenho ainda) dificuldade em decidir o que escrevo nos currículos e no perfil do Linkedin. Mas lidar com a esquisitice dos nossos afetos é parte do amor próprio, né? Eu cheguei até aqui através de tudo que eu vivi. Tudo me compõe — e continua me compondo. Não vou conseguir escolher o lado A ou o lado B. Assumi que sou modelo híbrido. Ou pessoa multipotencial, que fica mais bonitinho :)

(outra coisa que eu faço: sou escritora. acabei de lançar meu segundo livro, Todos os cachorros que eu abandonei. o primeiro, O chão que me fez, foi publicado em 2020. às vezes esqueço dessa parte que é tão legal)

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Alessandra Nahra

Escrevo, planto, estudo, viajo. Falo com bichos, abraço árvores, e vice-versa.